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A partir do momento que aceitei o desafio de ministrar a oficina de Teatro Inclusão em Cena, direcionada para pessoas com deficiência, alunos das APAES de Curitiba e região metropolitana, questionar o lugar do saber me pareceu um ponto central para o desenvolvimento pedagógico. Respondendo à pergunta “Como incluir as múltiplas deficiências nas formas dramáticas já estabelecidas?”, senti a necessidade de promover um rompimento no fazer teatral convencional e inverter o lugar do saber que a princípio seria meu, como professora e encenadora, para investir na relação da construção mútua do aprendizado teatral.  

A pandemia de Covid-19, no entanto, nos distanciou, dificultando essa proposta pedagógica que se baseia na presença e na troca de conteúdos intelectuais e afetivos. Mas, nós, do coletivo inclusão, sempre buscando integrar cada dia mais as pessoas com deficiência em suas atividades, apresentamos a proposta de incentivar os alunos a mandarem vídeos e fotos de seus trabalhos cênicos realizados ao longo das aulas digitais do Inclusão em Cena.

Se, por um lado, a adaptação da oficina para o formato digital fez perder a característica do ensino verticalizado que eu desejava, por outro, nos registros dos trabalhos realizados pelos estudantes percebemos algumas particularidades. As atividades mostram muito mais do que uma imitação dos exercícios propostos pela professora, como poderíamos imaginar a princípio, pois há algo único em cada atividade. E como a arte é maravilhosa! Alguns acontecimentos que poderiam parecer reforçar nossas dificuldades nos deram a oportunidade de vislumbrar modos de relação inesperados entre o conteúdo de nossas aulas e a intervenção criativa do aluno neles.

Um exemplo muito interessante disso foi o registro fotográfico da atividade de uma estudante da sede Luan Muller. Ao longo da oficina foi ofertada uma aula sobre máscara neutra. Com o objetivo de aumentar a expressividade do ator, a máscara neutra, como o nome já diz, não tem nenhum traço que permita identificar uma emoção; isso fica a cargo da expressão corporal do ator. Em outras palavras, a máscara completamente branca tem a função muito específica no treinamento de atores: anular a expressão facial do ator para que ele consiga comunicar apenas com o seu corpo aquilo que lhe é proposto.

Na fotografia enviada, a estudante pinta a sua máscara com tinta vermelha. Para os profissionais do teatro isso poderia ser considerado uma violação da primeira regra de máscara neutra: Respeito a máscara. Por outro lado, nesse contexto de conhecimento verticalizado, entendi que seria necessário reconhecer a beleza desse ato: A estudante encontrou o seu modo de se relacionar com a máscara, deu a ela um novo tom e um novo significado. Deste modo a máscara neutra deixou de ser a máscara neutra convencional para tornar-se uma máscara única e exclusiva. É nessa exclusividade, nesses novos modos de relação que a oficina Inclusão em Cena seguirá em seu modo presencial, buscando sempre encontrar aquilo que é único em cada um e que nos torna especiais.

O corpo carrega história, memórias e afetos e, neste sentido, meu papel dentro da oficina Inclusão em Cena não é propriamente o da professora, detentora de um conhecimento a ser repassado, mas o de uma mediadora, aquela que propõe um exercício e observa o aluno executando, à sua maneira, dentro de suas limitações e tira dali o material criativo a ser costurado futuramente em uma criação cênica. Conhecer cada um em sua individualidade, identificar potencias e urgências e transformar esse material em aprendizado ou em uma obra de arte é o papel do educador inclusivo.

Neste sentido, repensar o papel da máscara neutra dentro da perspectiva apresentada na fotografia é de fundamental importância. Se para os corpos padrões a máscara entra como um agente que problematiza a expressão habitual promovendo outras formas de comunicação e expressividade através do corpo, qual seria a dimensão e a função da neutralidade da máscara em um corpo que já detém características singulares? Claro que todos os corpos são singulares, e o exercício com a máscara dá maior visibilidade a estas singularidades. No entanto, o que se observa, no nosso exemplo, é que a singularidade não foi expressa pela neutralidade, mas pelo uso inesperado do material como suporte de pintura, configurando outro modo de relação que nos diz algo dessa vida que não perceberíamos se o exercício fosse feito corretamente. Isso nos faz pensar que a neutralidade para esses corpos está no modo como eles são percebidos por nossa sensibilidade padronizada. Poderia aqui se pensar nas inúmeras formas que o corpo humano se reestrutura para suprir eventuais deficiências, como por exemplo: um deficiente visual; que desenvolve sua audição e seu tato de uma forma muito mais apurada do que uma pessoa vidente, ou um deficiente auditivo, que ainda sim dança a partir do pulsar da vibração do som em seu corpo. Deste modo, aquilo que poderia se configurar como não entendimento do exercício, nos revela o sentido tanto da neutralidade quanto da expressividade de corpos que escapam das nossas projeções a respeito do que é o normal. Isso nos faz perceber que a criação surge a partir da urgência de cada corpo, de cada um e de cada história.  Ensinar teatro, presencialmente ou à distância, é criar as condições para cada um fale de si, à sua maneira.

 

 Por: Talita Stec – Professora de Teatro do Coletivo Inclusão