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Não imagino outra forma de ser feliz que não seja produzindo. Sentimento que carrego desde muito cedo, quando pude ver meu pai levando os negócios da família à frente, seguindo os passos de meu avô. Trabalhava duro e mostrava que independente de lucro, o essencial é ter sede de transformação. Transformar sua vida, de seus funcionários, da empresa, da sociedade.

Se tivesse que definir boa parte de minha personalidade, com uma única palavra, seria ‘trabalho’. Antes da tetraplegia, ainda bem nova, pude trabalhar com diferentes atividades. Fui cuidadora de pessoas com deficiência e de idosos, vendedora de roupa, publicitária, faxineira, professora de português para gringos e babá. Depois de tetra, fui modelo, psicoterapeuta, colunista, palestrante e gestora de ONG.

Todas essas funções, cada uma a sua maneira, contribuíram para o trabalho que desenvolvo hoje como representante pública.

Em meu primeiro mandato como deputada, eu não podia acessar a tribuna da Casa para realizar meus discursos. A mudança só aconteceu quando o plenário da Câmara foi reformado e eu comecei a ter acessos à tribuna e mesa diretora, o que tornou à época minha nomeação como terceira secretária da Mesa Diretora um fato simbólico e inédito na Casa – e não só por ser uma pessoa com deficiência, mas também por ser a primeira mulher a ocupar um cargo administrativo na Mesa.

Hoje, esse mesmo movimento de acessibilidade ocorre no Senado, que vem se adaptando para que eu possa exercer meu trabalho com dignidade.

Fato é que muitas pessoas com deficiência têm essa mesma vontade de produzir, no entanto, ainda são muito poucas as que fazem parte do mercado de trabalho formal. Para se ter uma ideia, no último Censo do IBGE, quase 20 milhões de brasileiros com deficiência declararam possuir alguma ocupação. No entanto, apenas cerca de 360 mil estão trabalhando com carteira assinada – o equivalente a 1% do contingente de trabalhadores no Brasil. Embora tenhamos avançado ainda falta muito. Atualmente 48% de todas as vagas destinadas a esse trabalhador são ocupadas. Os dados são do último levantamento realizado em 2017 pela RAIS – Relação Anual de Informações Sociais.

Os números são reflexo de uma barreira erguida muito antes de se chegar ao mercado, quando a pessoa com deficiência é tolhida do direito à educação. Hoje, apenas 31% das escolas de ensino básico no Brasil contam com acessibilidade.

É de conhecimento de grande parte da sociedade que o Brasil possui há mais de 20 anos uma legislação que garante vagas para pessoas com deficiência nas empresas com mais de 100 funcionários. Trata-se da Lei 8213, de 24 de julho de 1991, conhecida como Lei de Cotas, uma das grandes conquistas do trabalhador com deficiência e que recentemente buscamos aprimorar com o projeto de lei nº 1235/2019, de minha autoria, que prevê às empresas com 50 funcionários ou mais a obrigação de contratar pelo menos uma pessoa com deficiência. A proposta, aprovada recentemente na Comissão de Direitos Humanos e agora na Comissão de Assuntos Sociais do Senado, já fazia parte do texto inicial da Lei Brasileira de Inclusão, relatada por mim, mas que equivocadamente foi vetada neste artigo pela então presidente Dilma Rousseff.

A ideia é que as pequenas empresas e o mercado local em pequenos e médios municípios também incluam o funcionário com deficiência. A medida incentiva e fortalece o processo de inclusão além das grandes metrópoles, servindo de exemplo para que os gestores municipais desenvolvam ações na área. Essa é a ideia das cidades resilientes, que crescem de forma sustentável, sem deixar ninguém para trás.

Ainda na relatoria da Lei Brasileira da Inclusão (LBI), propomos a criação do Auxílio Inclusão, uma renda suplementar que será concedida à pessoa com deficiência que ingressar no mercado de trabalho. Diferente de ficar em casa, recebendo benefícios de subsistência do Estado, a pessoa com deficiência terá direito a um suporte financeiro para se tornar ativa na sociedade. Com isso, passará de beneficiada para contribuinte, como todo trabalhador.

As vantagens são inúmeras, inclusive para a Previdência do país, que deixará de apenas pagar benefícios integrais para milhões de pessoas e passará a receber a contribuição desses trabalhadores.

O Auxílio Inclusão servirá também como um estímulo para que esse funcionário arque com os custos da sua deficiência, como transporte adaptado, órteses, próteses, tecnologias assistivas. Uma pesquisa inédita no Brasil, encomendada pela secretaria Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência de SP, mostrou que em média, o trabalhador com deficiência gasta cinco salários mínimos para ter condições de trabalho iguais.

Ainda na LBI, reafirmamos a importância do processo de inclusão dentro das empresas, que ainda que ofereçam capacitação profissional, não poderão deixar de garantir a participação da pessoa com deficiência no desenvolvimento prático de suas funções. Ou seja, a capacitação deverá acontecer simultaneamente à inclusão no trabalho, desde o início do processo.

O cidadão com deficiência ativo no mercado de trabalho aquece a economia do País. E são essas mesmas pessoas, já impactadas por políticas públicas falhas, que precisam arcar com o custo de uma deficiência. Em tempos em que se discute a Reforma da Previdência não podemos ignorar a importância de se investir na empregabilidade desse público, que vive há décadas a omissão do Estado e que poderia ajudar a alavancar o país.

Neste Dia do Trabalhador, lembro que a pessoa com deficiência mata um leão por dia para sobreviver. E o Brasil tem a chance de apenas não só garantir os direitos já conquistados por essas pessoas, fazendo uma Reforma da Previdência justa, mas também de alavancar o país, tirando esses brasileiros da invisibilidade e usando toda sua força de trabalho.

Hoje, as grandes companhias do mundo já entendem que crescer em números é também evoluir em capital humano. Passou da hora do Brasil ver isso.

*Mara Gabrilli, senadora (PSDB-SP), publicitária, psicóloga, foi secretária da Pessoa com Deficiência da capital paulista e vereadora por São Paulo. Em 1997, após sofrer um acidente de carro que a deixou tetraplégica, fundou uma ONG para apoiar o paradesporto, fomentar pesquisas cientificas e promover a inclusão social em comunidades carentes

Fonte: Estadão